quarta-feira, novembro 12, 2014

Teoria de classes.

Começa a caminho da escola. De uma escola qualquer. Também pode ser no regresso. Pode chover ou estar calor. Pode ser em Portugal ou em Luanda. Pode voltar a acontecer mas também pode nunca ter acontecido.

"Mas há mesmo ladrões, pai?" "Pois claro, olha o vidro do carro do pai da L. ali partido."

Com um certo delírio, o homem começa a explicar: há vários tipos de ladrões. Os que partiram o vidro do carro, provavelmente roubaram qualquer coisa que encontraram dentro do carro. O vidro deve ser mais caro do que aquilo que roubaram. Tudo normal? Ok, mas o homem continua. Esses ladrões vivem aqui perto e roubam coisas que valem pouco dinheiro. E podem ser perigosos. Mas não são os que mais roubam. Os que mais roubam são outros.

"Quem?" - pergunta a criança. Ou façam de conta que pergunta. Ou perguntem vocês.

Há homens que parecem pessoas muito importantes, andam bem vestidos, mandam em muita gente e controlam bancos, câmaras municipais, grandes empresas e outras coisas muito importantes. E como podem fazer tudo que lhes apetece, roubam muito mais dinheiro. E esses não parecem ladrões. Não partem vidros. E ninguém sabe o que eles roubam.

Isto estava já a afastar-se um pouco da realidade terrena. Não havia qualquer necessidade de entrar tão rapidamente nas camadas altas da atmosfera. Portanto, surge a pergunta que se impõe para acabar com o delírio:

"-Mas então porque é que andam bem vestidos?"


| furadouro | outubro 2014 |

terça-feira, novembro 11, 2014

História com final infeliz

A senhora acordava todas as manhãs. A senhora acordava mas era sempre um pouco tarde. Porque o despertador das outras senhoras também as acordavam à mesma hora. Ou a outra hora. Mas todas saíam de casa à mesma hora. Mas nenhuma delas usava o autocarro ou o metro. Nos seus automóveis dirigiam-se para onde haviam de se dirigir.

A senhora tinha uma filha. Mas o carro não tinha onde parar. A filha tinha uma escola e havia que sair do carro todas as manhãs. E havia um certo atraso, por causa daquilo do despertador das outras senhoras. Ou do trânsito. Ou da chuva. Ou da própria filha que desrespeitava o tique-taque como se de uma mera convenção se tratasse. Era o mundo todo contra o resto do mundo todas as manhãs.

E ali à porta da escola, não havia grande alternativa. O carro só podia ficar em cima do passeio. As ruas estreitas, os despertadores, as horas, tudo isso a forçava a deixar o carro em cima daquele passeio. Ela preferia não o fazer. O ideal seria que houvesse um lugar livre todas as manhãs à sua espera. Infelizmente não era o caso. Ainda por cima, o espaço em cima do passeio era exíguo, obrigava a manobras. Pisca-pisca, chega à frente, chega atrás, chega outra vez à frente, pisca-pisca.

Num dos "chega-atrás" ela não viu uma criança que estava por trás do carro. E o carro lá a empurrou. O pai da outra criança bateu-lhe três vezes com as mãos no carro. E ela, como nem se apercebeu que havia batido na criança, ficou infeliz. Ou outra coisa qualquer que lhe mexeu com os nervos. Pobrezinha.


| foge foge | novembro 2014 |